A possibilidade de expressar os nossos pensamentos e opiniões mais profundas, sem filtros ou restrições, parece tocar em algo primordial em nossa natureza, um anseio por autonomia e auto afirmação que transcende as barreiras da razão e da prudência, conduzindo alguns à defesa da ortodoxia da liberdade de expressão.
Estes ortodoxos, alavancados na sua crença quase religiosa sobre liberdade de expressão, vêm no mínimo limite à mesma um ataque à própria essência da humanidade, um retrocesso à Idade das Trevas, um atentado à nossa capacidade de pensar, sentir e ser.
Espalhar teorias conspiratórias absurdas, caluniar, espalhar fraudes, denegrir minorias ao ponto de lhes roubar a sua dignidade, tudo isto parece não ser apenas um direito para estes ortodoxos, mas um dever sagrado, uma forma de resistência contra as forças imperialistas ou a Nova Ordem Mundial, conforme o lado do espectro político em que se encontrem.
Será que realmente queremos viver num mundo onde a expressão não tem qualquer consideração pelos seus impactos sobre os outros e sobre a sociedade como um todo? Será que a liberdade de expressão é um direito tão absoluto que se sobrepõe a todos os outros, mesmo quando usada para disseminar o ódio, a mentira e a violência?
A minha resposta é Não. A liberdade de expressão, embora fundamental para uma sociedade livre e democrática, não pode ser um passaporte para a irresponsabilidade e para o caos. Liberdade com responsabilidade, onde, como com qualquer outro direito, a liberdade de expressão possui limites que devem ser respeitados em prol do bem comum, na defesa do contrato social defendido por Hobbes ou Locke e respeito pelo Princípio de Dano Alheio de Stuart Mill.
Os ortodoxos da liberdade de expressão absoluta escudam-se no conceito do “mercado de ideias”, argumentando que a melhor maneira de combater as más ideias é permitir que elas circulem livremente, confiando na capacidade da verdade e razão prevalecerem.
A realidade é que a verdade não prevalece sempre, como foi o caso da propaganda e desinformação nos tempos do nazismo, e como é o caso das câmaras de eco das plataformas digitais, onde as mentiras e fake news se tornam “verdades”, criando um ambiente onde a desinformação se espalha como um vírus, dando depois origem a violência e destruição, de que são exemplos a perseguição aos Rohingya em Myanmar ou o ataque ao Capitólio.
Jeremy Waldron, em contra-corrente contra a Primeira Emenda norte-americana, argumenta na sua obra “The Harm in Hate Speech” que o discurso de ódio não é apenas ofensivo, mas também causa danos reais às vítimas, criando um clima de medo e hostilidade que mina a dignidade humana e a coesão social. A desinformação, por sua vez, pode ter consequências igualmente graves, levando a decisões políticas desastrosas, prejudicando a saúde pública e corroendo a confiança nas instituições.
Fora dos Estados Unidos, em particular na União Europeia, tem-se adotado uma abordagem menos ortodoxa em relação à liberdade de expressão, procurando equilibrar esse direito com a necessidade de proteger indivíduos e grupos vulneráveis contra o discurso de ódio e outras formas de expressão prejudicial, respeitando outros direitos humanos e valores fundamentais.
Devemos continuar a procurar medidas legais, tecnológicas e educacionais que protejam a liberdade de expressão, ao mesmo tempo que combatemos o discurso de ódio, a desinformação e outras formas de expressão prejudicial, responsabilizando também as plataformas digitais através de regulação como o Digital Services Act, garantindo que essa regulação não é usada para suprimir a dissidência legítima ou limitar o debate público saudável.
John Locke na sua Carta sobre Tolerância defende a tolerância religiosa mas adverte para os actos cometidos em nome da religião que coloquem em causa a paz e segurança da sociedade, encorajando uma cultura de respeito e tolerância, em que se incentiva o diálogo civilizado, a compreensão e o respeito mútuo.
Cabe-nos assim usar a liberdade de expressão não como um fim em si mesma, mas antes como um meio para alcançarmos uma sociedade mais justa e próspera. Ao reconhecermos os seus limites e agirmos com responsabilidade, podemos garantir que esse direito fundamental continua a ser uma bússola que ajuda a encontrar o caminho para um futuro melhor para todos.